domingo, 14 de agosto de 2016

História da unha do dedão do pé do fim do mundo

O curta metragem dirigido por Márcia Roth foi roterizado por Bianca Ramoneda, ilustrado por Evandro Salles e musicado por Tim Rescala a partir da poesia de Manoel de Barros. Com passagens literais dos poemas de Barros, as ilustrações e a sonoplastia parecem amplificar as imagens poéticas, transformando a narração de alguns minutos em uma nova poesia audiovisual. As imagens e a música parecem traduzir o poema, sem tornar muito literal, porém induzindo a criatividade por estes estímulos, explorando a sinestesia já expressada na poesia de Manoel. O curta, apesar de endereçado para o público infantojuvenil, é rico em conexões originais, principalmente no áudio que conta com vozes infantis e sons inusitados e harmoniosos.


Segue a narração do curta transcrita:

"Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas."
"Tem livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água. O mesmo que criar peixes no bolso. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são muito maiores e até infinitos. Com o tempo, aquele menino que era cismado e esquisito, porque gostava de carregar água na peneira, com o tempo, descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando um ponto no final da frase. Foi capaz de modificar uma tarde botando chuva. A mãe falou: meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens. E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos."
"O pai morava no fim de um lugar. Aqui é lacuna de gente, ele falou. Só quase que tem bicho, andorinha e árvore. Era um lugar sem nome nem vizinhos. Diziam que ali era a unha do dedão do pé do fim do mundo. A gente crescia sem ter outra casa ao lado. No lugar só constavam pássaros, árvores, o rio e seus peixes. Havia cavalos sem freios nos matos. Cheios de borboletas nas costas. O resto era só distância. No quintal, a gente gostava de brincar com palavras mais do que de brincar de bicicleta. Principalmente porque ninguém possuía bicicleta. A gente brincava de palavras descomparadas, tipo assim: o céu tem três letras, o sol tem três letras, o inseto é maior, porque o inseto tem seis letras e o sol só tem três. A gente inventou um truque para fabricar brinquedos com palavras. O truque era só virar bocó, como dizer "eu pendurei um bem-te-vi no sol.".Meu irmão veio correndo mostrar um brinquedo que inventara. Era assim: "besouros não trepam no abstrato, quem não tem ferramentas de pensar, inventa."
"Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore. Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho. No estágio de ser árvore, meu irmão aprendeu de sol, de céu e de lua, mais do que na escola. Meu irmão agradeceu a deus aquela permanência em árvore porque fez amizade com muitas borboletas."
"A gente foi criado em um lugar em que não havia brinquedo fabricado. A gente havia de fazer nossos brinquedos. Eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Também a gente fazia de conta que sapo é boi de sela. Viajava de sapo! Outra, era ouvir as conchas as origens do mundo. Hoje completei dez anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite,
o silêncio estica
os lírios.
Meu irmão veio mostrar outro brinquedo. Era assim: "Formiga é ser tão pequeno que não aguenta nem neblina. Para infantilizar formigas, é só pingar um pouquinho de água no coração delas. Achei fácil."
Meus filhos! O dia já envelheceu! Entrem pra dentro!
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal, são sempre maiores que as outras pedras do mundo. Nada havia de mais prestante em nós se não a infância. O mundo começava ali."

Manoel de Barros - Infantil é todas as Idades!



Manoel Wenceslau Leite de Barros foi um poeta brasileiro do século XX, e pertenceu à geração de 45 do pós-modernismo brasileiro, se situando mais próximo das vanguardas europeias do início do século e da Poesia Pau-Brasil e da Antropofagia de Oswald de Andrade. Nascido no Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá, no estado do Mato Grosso em 1916, publicou seu primeiro livro "Poemas concebidos sem Pecado" em 19 de dezembro de 1937, mas o reconhecimento do público aconteceu nos anos 80. É considerado um dos mais aclamados poetas contemporâneos: Em 1986, o poeta Carlos Drummond de Andrade declarou que Manoel de Barros era o maior poeta brasileiro vivo. Antonio Houaiss, um dos mais importantes filólogos e críticos brasileiros, escreveu: "A poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo". O escritor morreu em 13 de dezembro de 2014, aos 97 anos.

Manoel se destaca, principalmente, por ter construído uma linguagem inovadora, cheia de neologismos que homenageiam o modo de falar colóquio-rural, marcado pela oralidade - modo de fazer poesia essencialmente característico à obra modernista. Devido ao uso muito forte de marcas de oralidade na linguagem escrita, Manoel de Barros costuma ser muito comparado com Guimarães Rosa, uma vez que ambos, um na poesia e o outro na prosa, levaram as ideias que Oswald de Andrade expressava em seu "Manifesto Antropofágico".

Além do fato de sua produção poética tem uma negação tanto à retórica quanto à erudição linguística, ele mostra também uma negação ao lugar comum também no conteúdo de seus poemas. Manoel constrói sua obra a partir de elementos residuais, considerados sobras ou restos pela sociedade em que vive. Elege para protagonizar sua poesia objetos e conceitos sem valor de troca, desconsiderados pelo leitor (por exemplo: latas, a parede, morcegos, parafusos velhos, etc.). O próprio autor reconhece esse traço em sua obra:

Meu desagero
é de ser
fascinado por trastes.

(Manoel de Barros - Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. 2001)

Dentre os renegados, ou aqueles cujo discurso não é legitimado socialmente, está a criança, um ser que permeia boa parte da obra de Manoel de Barros. O autor vê na linguagem infantil diversas possibilidades, que incluem, além de seu uso para ampliar o mundo (tanto o real quanto o imaginário), considerando que a criança se utiliza da linguagem para recriar e transfigurar a realidade, também as deslimitações que elas tem com o seu uso. A transcrição do poema abaixo, retirado da obra do autor, ilustra o que pensava o autor da forma como as crianças usam a língua.

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá,
Onde a criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,que é a voz de fazer
nascimentos-
O verbo tem que pegar delírio.
(Manoel de Barros - O livro das ignorãças. 1993)

A partir da leitura desse poema, pode-se notar que Manoel não apenas legitima a forma de a criança falar, como a exalta. Aqui ele reconhece na criança não um ser incompetente ou sem conhecimento de mundo, mas justamente um indivíduo ainda não corrompido pelas certezas sociais, e portanto aberto para a inventividade e a transgressão. Quando o eu lírico cita uma criança que diz "eu escuto a cor dos passarinhos",  ele usa sinestesia, uma vez que não podemos escutar a cor dos pássaros. Logo, o delírio do verbo se refere à apropriação pouco madura feita pela criança, que ainda não domina a função do verbo “escutar”. Ele, no entanto, reconhece o 'delírio' infante como uma possibilidade a ser explorada, e não a ser podada. Assim, em seus poemas, a criança tem a liberdade de brincar com as palavras, reinventando-as e dando a elas novos sentidos. Aqui, a suposta sabedoria didatizada dos adultos vem apenas para atrapalhar, desencorajando esse mundo de possibilidade aberto pela inventividade da criança.

Portanto, a partir do momento em que Manoel, em sua obra, rompe com a norma culta da língua, utilizando o linguajar infantil e o modo da criança falar, considerado impróprio, para compor sua arte, é possível deduzir que muito de sua obra se tornou acessível  às próprias crianças. Sua obra está muito inserida no imaginário infantil, e se coloca dentro do mundo delas, que podem apreciar de diversas formas, a poesia de Manoel de Barros.

Obra inclui: Poemas concebidos sem pecado (1937), Face Imóvel (1942), Poesias (1956), Compêndio para uso dos pássaros (1960), Gramática expositiva do chão (1966), Matéria de poesia (1974), Arranjos para assobio (1980), Livro de pré-coisa (1985), O guardador das águas (1989), Gramática expositiva do chão: Poesia quase toda (1990), Concerto a céu aberto para solos de aves (1993), O Livro das ignorãças (1993), Livro sobre nada (1996), Das Buch der Unwissenheiten (1996), Retrato do artista quando coisa (1998), Ensaios Fotográficos (2000), Exercícios de ser criança (2000), Encantador de palavras (2000), O fazedor de amanhecer (2001), Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001), Águas (2001), Para encontrar o azul eu uso pássaros (2003), Cantigas para um passarinho À toa (2003), Les paroles sans limite (2003), Todo lo que no invento es falso (2003), Poemas Rupestres (2004), Riba del dessemblar (2005), Memórias inventadas I (2005), Memórias inventadas II (2006), Memórias inventadas III (2007), Menino do mato (2010), Poesias Completas (2010)

Análise: Um Bem-te-Vi



O leve e macio
raio de sol
se opõe no rio
faz arrebol

Da árvore evola
amarelo do alto
bem-te-vi cartola
e, de um salto

pousa envergonhado
no bebedouro
a banhar seu louro

pelo enramado
De arrepio, na cerca
Já se abriu, e seca
(em Compêndio para uso dos pássaros, 1999)
Nesse poema, intitulado Um Bem-te-vi, Barros novamente usa elementos da natureza em sua poesia, dessa vez pintando um quadro, ou descrevendo uma fotografia. Com uma série de eventos, que descrevem imagens simples e precisas da natureza, ele compõe um retrato de sua terra através de palavras. Os primeiros versos são, dessa forma, descritivos, e o autor usa dois sentidos: Tato (O leve e macio/raio de sol) e visão (se põe no rio./faz arrebol) para descrever o pôr-do-sol.
Na segunda estrofe, inicia-se a descrição do bem-te-vi, que surge em voo do alto da árvore. O fim abrupto da segunda estrofe mostra uma pausa, em que o eu-lírico quer enfatizar o que vai acontecer em seguida: o banho do bem-te-vi na terceira estrofe, (no bebedouro/a banhar seu louro) e seu processo de secagem na quarta estrofe (De arrepio, na cerca/Já se abriu, e seca). Todos esses acontecimentos são descritos como um take fotográfico, de modo a tentar colocar através da palavra uma imagem corriqueira na vida no campo.
O cantor Márcio de Camillo, responsável pela proposta de musicar as suas poesias que resultou projeto Crianceiras, com ilustrações feitas por Marta Barros, musicou esse poema. Confira no vídeo abaixo o lindo resultado!

Análise: Infantil




Infantil

O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do menino
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que
o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
E não preciso fazer razão.


(Em Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, 2001)





   Manoel explora a poeticidade das imagens inventadas em contraponto com um questionamento sobre a coerência, sobre explicações objetivas para a compreensão do poema. Porém, ao invés de negar qualquer explicação, o poema se resolve ao assumir que por ser poema tem licença para alargar os limites da coerência. Mais uma vez, esta coerência poética se aproxima da coerência infantil, da narração e da invenção. 
   O poema traz um elemento de surpresa ao se misturar com a narração do menino que faz o poema dentro do poema. Além de repetir a figura de metalinguagem, é como se fosse criado um segundo poema depois que se descobre quem o escreve - o menino que quer inventar uma poesia, não o poeta, aquele, ilustre. 
   Esta surpresa gera um sentido humorístico, não pela ironia ou sarcasmo mas pela ingenuidade que se apresenta na voz infantil do personagem, projeção do poeta no sujeito poético, este menino-poeta. 







sábado, 13 de agosto de 2016

Análise: O menino e o Rio


O menino e o Rio


O corpo do rio prateia
quando a lua se abre

Passarinhos do mato gostam
de mim e de goiaba

Uma rã me benzeu
com as mãos na água

Com os fios de orvalho
aranhas tecem a madrugada

Era o menino e os bichinhos
Era o menino e o sol
O menino e o rio
Era o menino e as árvores

Cresci brincando no chão
entre formigas

Meu quintal é maior
do que o mundo

Por dentro da nossa casa
passava um rio inventado

Tudo que não invento
é falso

Era o menino e os bichinhos
Era o menino e o sol
O menino e o rio
Era o menino e as árvores

(em Poesia Completa, 2010)






“Tudo que não invento é falso”. Com esse paradoxo, Manoel de Barros inicia este livro que são fragmentos de lembranças livres em um tempo aparentemente invisível. Cada trecho é diagramado em páginas soltas e podem ser lidos em qualquer ordem, sem nenhum tipo de linearidade. Afinal, a imaginação do autor não possui regras determinadas.

Conforme se passeia pelas páginas, percebe-se o tom poético de Manoel. O autor se preocupa com cada palavra, esculpindo um texto que tem como preocupação primordial a busca pela beleza.

Mais que prosa, poesia, música ou qualquer outro rótulo que se possa aplicar ao trabalho de Manoel de Barros, está neste livro a linguagem perfeita, mesmo que não tenha sido esta sua intenção. No livro: “quisera uma linguagem que obedecesse a desordem das falas infantis do que as ordens gramaticais [...] desfazer o normal há de ser uma normal”.














Análise: O menino que carregava água na peneira


    
O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,

porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

(em Exercício de ser criança, 1999)



   O poema ilustra as próprias imagens ao desvendar o significado das metáforas. O tema central é metalinguístico: o próprio fazer poético, o ato de fazer poesia e ser poeta. 
   A imagem de carregar água na peneira comparada ao trabalhar com as palavras pode ser compreendida na perda que existe entre o mundo que se vê, se sente, e o que é transmitido para o papel através das palavras. A mensagem é como a água que transportada com um instrumento cheio de falhas, como é a palavra, perde-se no caminho. 
   Entretanto, para a poesia, o vazio não é problema e, na verdade, é até possível ser mais frutífero o caminho tortuoso do que a abundância, como reconhece Manoel em outra passagem "Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina"*.
   O poema também compara o olhar do poeta com o olhar do menino, a partir da voz da mãe que afirma, ao perceber a sensibilidade no olhar da criança, que este menino será poeta. Esta comparação se dá muito naturalmente, demonstrando como o universo infantil apreende uma criatividade em todos os níveis, inclusive na língua e no texto. Aqui, Manoel de Barros coloca em pé de igualdade, a criação infantil de brincadeiras, invenção de histórias (viu que podia fazer peraltagens, era capaz de ser vários personagens) e a poesia, compreendida no cânone como alto desenvolvimento das capacidades linguísticas. 
   No entanto, Manoel nos ensina que a poesia, muito mais do que uma habilidade minuciosa, é uma sensibilidade brutal, crua, infantil. E as mais delicadas minúcias desta tarefa é encontrar o jeito de peneirar o ouro líquido que mata a sede de um olhar de menino curioso e inventivo e transportá-lo para mostrar a outro alguém.




*Manoel por Manoel

Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.
(Manoel de Barros)
(Memórias inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros, São Paulo: Planeta do Brasil, 2010.
 p. 187)

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Análise: O Primeiro Poema

 
O primeiro poema:
O menino foi andando na beira do rio
E achou uma voz sem boca. A voz era azul.
Difícil foi achar a boca que falasse azul. Tinha um índio terena que disque Falava azul.
Mas ele morava longe.
E na beira de um rio que era longe. Mas o índio só aparecia de tarde.
o menino achou o índio e a boca era
Bem normal.
Só que o índio usava um apito de Chamar perdiz que dava um canto Azul.
Era que a perdiz atendia ao chamado
Pela cor e não pelo canto. A perdiz atendia pelo azul
 

(em Menino do Mato, 2010)


Esse poema começa curiosamente: Apesar de ser o último poema do livro "Menino do Mato", inicia-se com o verso "O primeiro poema", em itálico. É uma narrativa poética, em que Manoel de Barros evoca imagens da natureza para contar a história de um menino, eu-lírico, e seu aprendizado com os sons da natureza. Esse poema traz os principais elementos que são essencialmente característicos da obra de Barros. Há claros traços de oralidade, como por exemplo em disque (uma expressão popular, que indica algo como "Ouvi dizer que...", ou "dizem por aí que..."), além de um modo de compor o poema como quem conta uma história, com quebras em momentos específicos de oralidade, por exemplo.
Quando conta sobre a voz sem boca, e afirma a voz ser "azul", o autor usa de sua tendência a recorrer à linguagem e vocabulário infantil para explicar o mundo: Faz uso da inventividade inerente à criança, que ainda não classifica azul como apenas uma denominação de cor, mas como um adjetivo em aberto, passível de descrever diversas impressões e sensações. Essa é outra marca importante da poesia de Barros, que acha que a voz dos poetas está nas crianças e em outras minorias sociais, e usando seu ponto de vista recria a realidade e tira a visão de mundo do leitor da obviedade. O azul, até aqui, pode simbolizar diversas sensações experimentadas por um menino quando em contato com a natureza.
Ao longo da estória, o menino encontra alguém que "fale azul", um índio (nacionalismo e uso de figuras do imaginário brasileiro, um elemento importante na poesia de autores da vanguarda modernista, como Barros) que tem uma boca "bem normal". Ao descobrir que o índio não fala azul, mas sim tem um apito que produz esse canto, fica evidente que o som azul trata do canto da perdiz. O fato de a perdiz atender pela cor remete à ideia de resconstruir o sentido comum da palavra, e possivelmente ressignifica-lo, uma vez que o som é pragmaticamente apenas um conjunto de ondas sonoras. Ou seja, dizer "canto da perdiz" se refere apenas ao som produzido pela ave. A "voz azul" pode envolver a beleza do canto, a relação sinestésica entre esse canto e o menino, e a sensação/necessidade de com ele se comunicar - afinal, é movido por ela é que o eu-lírico procura o índio.
Desse modo, o autor provoca, através da palavra, o repensar na relação com a natureza, além do repensar no próprio uso das palavras e da linguagem como um todo, no sentido de abrir e reconstruir significações e restritividade do uso da língua, principalmente escrita.

Cantigas por um passarinho à toa

 
Neste livro, Manoel de Barros se une à artista plástica Martha Barros, numa dobradinha familiar. É a própria filha do escritor a responsável por transformar seus versos em imagens, levando o trabalho do poeta do pantanal ao público infantil. Os versos ganham forma, força e cor no traço da ilustradora. 'Cantigas por um passarinho à toa' apresenta uma oportunidade imperdível de apresentar às crianças a obra de um dos mais importantes poetas da literatura brasileira contemporânea. Martha Barros colabora, conseguindo o impressionante feito de desenhar os poemas infantis de Manoel. O resultado emociona pela beleza das imagens e delicadeza da poesia dedicada aos pequenos. (Fonte: Google Books)

Nesse vídeo é possível acompanhar, em formato de áudio, uma narração da história, numa iniciativa do Ministério da Cultura.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016