sábado, 13 de agosto de 2016

Análise: O menino que carregava água na peneira


    
O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,

porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

(em Exercício de ser criança, 1999)



   O poema ilustra as próprias imagens ao desvendar o significado das metáforas. O tema central é metalinguístico: o próprio fazer poético, o ato de fazer poesia e ser poeta. 
   A imagem de carregar água na peneira comparada ao trabalhar com as palavras pode ser compreendida na perda que existe entre o mundo que se vê, se sente, e o que é transmitido para o papel através das palavras. A mensagem é como a água que transportada com um instrumento cheio de falhas, como é a palavra, perde-se no caminho. 
   Entretanto, para a poesia, o vazio não é problema e, na verdade, é até possível ser mais frutífero o caminho tortuoso do que a abundância, como reconhece Manoel em outra passagem "Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina"*.
   O poema também compara o olhar do poeta com o olhar do menino, a partir da voz da mãe que afirma, ao perceber a sensibilidade no olhar da criança, que este menino será poeta. Esta comparação se dá muito naturalmente, demonstrando como o universo infantil apreende uma criatividade em todos os níveis, inclusive na língua e no texto. Aqui, Manoel de Barros coloca em pé de igualdade, a criação infantil de brincadeiras, invenção de histórias (viu que podia fazer peraltagens, era capaz de ser vários personagens) e a poesia, compreendida no cânone como alto desenvolvimento das capacidades linguísticas. 
   No entanto, Manoel nos ensina que a poesia, muito mais do que uma habilidade minuciosa, é uma sensibilidade brutal, crua, infantil. E as mais delicadas minúcias desta tarefa é encontrar o jeito de peneirar o ouro líquido que mata a sede de um olhar de menino curioso e inventivo e transportá-lo para mostrar a outro alguém.




*Manoel por Manoel

Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.
(Manoel de Barros)
(Memórias inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros, São Paulo: Planeta do Brasil, 2010.
 p. 187)

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